A saga dos portugueses
Da esperança de uma nova terra à construção de uma história
Os primeiros portugueses que chegaram a Campo Grande no início do século passado buscavam uma vida nova, queriam prosperar. Com a vinda destes para trabalhar com a estrada de ferro, outros também acompanharam o fluxo e logo a cidade que era uma parte perdida no centro-oeste brasileiro tornou-se o lar de numerosos imigrantes portugueses. A colônia portuguesa resolveu se unir e o resultado desta experiência é o que hoje se chama Associação Luso Brasileira. Muita gente conhece apenas sua estrutura física, o Clube Estoril, e ainda não teve a oportunidade de descobrir a história que a antecedeu. É isso que você acompanha nesta reportagem especial, uma viagem pela trajetória da colônia portuguesa organizada em Campo Grande, que passou de Centro Beneficente Português à Associação Luso Brasileira.
Primeira fase: a criação do Centro Beneficente Português
O TREM QUE ATRAVESSOU O OCEANO
Fernando Azevedo, em seu livro Um trem corre para o Oeste, conta que Campo Grande “não passava de uma povoação sertaneja, com 1.800 habitantes” antes da chegada da estrada de ferro Noroeste do Brasil à cidade. No ano de 1914, quando isso aconteceu, o desenvolvimento e as mudanças no cenário cultural, econômico e social foram significativas, e, já na década seguinte, Campo Grande tinha agências bancárias, padarias, fábricas de gelo, de massas alimentícias, marcenarias e até agências de automóveis. O trem permitiu o intercâmbio de mercadorias e informações, e aumentou consideravelmente o fluxo de pessoas à cidade, acentuou o desenvolvimento econômico e colocou em ebulição a vida sociocultural do antigo vilarejo. O dinamismo estimulou a vinda e o estabelecimento de imigrantes, que se dirigiam a Campo Grande com a ideia de uma nova terra, onde novas oportunidades seriam possíveis. Por volta de 1920 a presença de imigrantes representava cerca de 9% da população residente em Campo Grande. O município deixava de ser um vilarejo isolado e passava a fazer parte do mundo. Atraídos pela construção da estrada de ferro que interligaria o estado de São Paulo ao sul do então estado de Mato Grosso, os primeiros integrantes da colônia portuguesa chegaram buscando novos horizontes para seus negócios e suas vidas. Com a vinda dos primeiros portugueses com potencial para investir no município, como o caso da família Secco Thomé, que trabalhava na fabricação de dormentes para a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB) e na construção civil, ou mais tarde, dos empresários do ramo da metalurgia e indústria, como a família Estevão, que trabalhou na construção de prédios militares e produziu carroças, charretes e carretas, não apenas os habitantes locais eram beneficiados com diversas possibilidades de emprego, mas também os conterrâneos destes imigrantes, que seriam convidados por meio das Cartas de Chamada para aqui se instalarem em busca de prosperidade.
VELHO-OESTE CAMPOGRANDENSE
Mas essa estadia em terras além-mar não seria fácil. A história conta que a cidade de Campo Grande tinha pouca estrutura, poucos habitantes e era uma terra de ninguém. “Antes da ferrovia, Campo Grande não passava de uma pequena aglomeração de pessoas, perdida no sertão e encoberta pela poeira da história (poderíamos acrescentar, pelo sangue também).” [ARRUDA, Gilmar, ARCA nº 2 pág. 10]. Os contrastes que esses imigrantes percebiam ao seu redor iam além da cor vermelha da terra, do mato alto e do clima quente. Para ter ideia do “velho oeste” que era a cidade no início de 1900, é curioso ler um trecho do relato da artista plástica “Miska”, Emilcy Thomé Gomez, sobre a chegada de Antônio Secco Thomé e seus filhos Manoel e Joaquim Secco Thomé à cidade, em busca de outro filho, Bernardinho, que tinha vindo anos antes e contraiu tuberculose. No livro “Campo Grande – 100 anos de construção”, Miska conta que, em 1913, a linha da estrada de ferro Noroeste do Brasil terminava no município de Água Clara, e que a família de portugueses deveria percorrer a pé, a cavalo ou em carro de boi, os cerca de 200 quilômetros que separavam essa cidade ao município de Campo Grande. Como não tinham dinheiro para pagar o transporte de todos, alugaram uma montaria para o pai Antônio e os outros partiram a pé, o que acabou com seus calçados. “E assim, chegaram os aventureiros a Campo Grande em busca do irmão, só com os canos das meias, depois da caminhada de uns seis dias. Não tinham muita referência para encontrar tio Bernardinho e, naquela primeira noite, conseguiram abrigo num galpão que ficava na Rua 13 de Maio, perto de onde é hoje o Hotel Campo Grande. Estavam deitados em cima de umas tábuas, depois de comer bananas com queijo, quando foram surpreendidos por um tiroteio. Eram balas de fuzis que zuniam por suas cabeças e algumas ricocheteavam no teto de zinco do galpão. Tio Joaquim dizia que ficaram apavorados, sem entender nada. Vovô já tinha 26 anos, mas ele, apenas 18. No dia seguinte foram saber o que havia acontecido. Na esquina da Rua 13 de Maio com a Barão estava instalado um circo e na Afonso Pena ficava o quartel da polícia. Houve um desentendimento entre os artistas e os policiais e várias pessoas morreram. A cena que viram no picadeiro foi a de um rapaz tido como maluco, espetando os cadáveres com um punhal para verificar se realmente estavam mortos. Uma cena apavorante, sem dúvida. Essa foi a primeira noite deles em Campo Grande”.
O CENTRO BENEFICENTE PORTUGUÊS É CRIADO
Em 1929 um número significativo de portugueses vivia em Campo Grande. Um grupo que por várias vezes se reuniu na chácara da família dos Vendas resolveu formar uma comissão e convocar uma reunião para congregar a colônia, cultivar tradições e preservar as origens. Reunidos no hotel Central situado na antiga Praça Senador Azevedo, hoje Ari Coelho, no dia 14 de julho de 1929, estavam, Manoel Secco Thomé, Antônio da Silva Vendas, Manoel Fernandes, Guilhermino dos Santos, José Maria da Cunha, Cesar Telles, Francisco Amorim, Luis Lousinha, entre outros, que decidiram pela organização de um centro para a colônia portuguesa, com o nome de Centro Beneficente Português. A decisão levou em conta a realidade da época, quando a comunicação com o resto do mundo era difícil e a qualidade de vida em uma cidade que ainda engatinhava era precária. Além disso, em várias cidades brasileiras, as colônias portuguesas fundaram centros beneficentes, alguns dos quais se tornaram santas-casas de misericórdia ou beneficências portuguesas. Por isso, a configuração das primeiras décadas do Centro Beneficente Português é essencialmente assistencial, pois servia de amparo para os portugueses que viviam em Campo Grande, prestando ajuda e até mesmo ficando responsável por funerais de conterrâneos, como descreve o livro “Centro Beneficente Português, Uma vida uma história”, de Ledir Pedrosa: “Nesse mês, ou seja, dia 24 de agosto [de 1930], faleceu o sócio João Gago Michomem. De acordo com o Estatuto, o Centro Beneficente Português foi o responsável pelo funeral”. Os primeiros anos do Centro foram registrados em ata e algumas diretorias chegaram a ser compostas antes mesmo de haver sede para o grupo. Por um longo período as reuniões aconteciam ou no saguão de hotéis ou na casa de alguns dos integrantes associados. Eventos, doações e promoções com a finalidade de arrecadar fundos para o Centro Português datam do início de sua existência. Parte das primeiras arrecadações seria destinada para a construção da sede e outra parte era empregada para donativos assistenciais. A maior ambição dos primeiros portugueses que fundaram o Centro era construir um hospital que atendesse os imigrantes lusitanos e que os desse suporte na velhice, como um asilo, caso fosse necessário. Afinal de contas, a um oceano de distância dos familiares, a associação com outros imigrantes era a única garantia de amparo em casos de urgência. Os tempos eram outros. O diretor cultural do Clube Estoril, Robson Simões de Almeida, chama atenção para os costumes rígidos da época: “Você percebe a diferença de mentalidade para os dias de hoje principalmente nos motivos que limitavam a assistência. Um dos artigos aprovados no estatuto em setembro de 1931 dizia que era função do Centro socorrer seus sócios doentes, oferecendo-lhes médicos e farmácia, desde que a doença não fosse venérea, ou seja, estavam dispostos a atender a qualquer problema que não pudesse ser considerado imoral, evidenciando o conservadorismo do pensamento do início do século passado”.
ENFIM, UMA SEDE
Assim como o Centro Beneficente Português se propunha a prestar assistência aos imigrantes radicados em Campo Grande, era notável a preocupação destes portugueses com o futuro do daquela que seria hoje a Associação Luso Brasileira. Conta-se no livro de Ledir Pedrosa, que o sócio João Nunes deixou para o Centro em seu testamento um terreno para a construção de um hospital de caridade e uma quantia em dinheiro para os acertos do hospital e farmácia com o doutor Fernando Correa da Costa pelo tratamento de outro sócio, sendo que o restante deveria ficar para o Centro Beneficente Português. O entusiasmo dos sócios com o que poderia vir a ser um pequeno hospital de caridade os fez pensar em uma sede para a colônia. Em 11 de janeiro de 1932, reunidos na casa do então presidente Manoel Secco Thomé, a diretoria decidiu adquirir um terreno na Rua Barão do Rio Branco, nº 5, que pertencia ao falecido português Manoel Francisco Pereira Júnior, por ser o que tinha melhor preço e localização. O espaço foi comprado no mês seguinte, mas o lançamento da pedra fundamental só aconteceu no dia 8 de novembro de 1935, mais de três anos depois, e parte da sede só ficou pronta em 5 de outubro de 1939. Chegou-se a cogitar a construção de quartos que serviriam para arrecadar fundos para o Centro, ideia que foi refutada para a construção do salão social, que poderia abrigar eventos realizados pela colônia, além de futuramente servir como fonte de renda por meio do seu aluguel. O auge dessa primeira fase do Centro Beneficente Português vai de 1935 até 1950, quando os eventos mais importantes da cidade eram realizados nas suas dependências.
MAIS LUSO QUE BRASILEIRO
Nessa primeira fase, o Centro Beneficente Português é composto eminentemente por portugueses natos, o que se percebe em fatos curiosos. No início da década de 40, um ciclone atingiu Portugal, e a solidariedade dos imigrantes em Campo Grande com os conterrâneos os mobilizou a propor uma campanha pró-vítimas e a promover um baile de gala no sábado de aleluia, de cuja renda líquida 50% seria destinada para doação. Outro caso é da concessão, na mesma década, de um diploma de sócio honorário do Centro Beneficente Português ao major professor Severino Ramos de Queiróz, que defendeu em suas colunas no Jornal do Comércio, a continuidade da Língua Portuguesa como idioma oficial do Brasil, contra a ideia de alguns linguistas que vinham pregando que fosse rebatizada como Língua Brasileira. Além da maior influência portuguesa no Brasil, a língua, outros traços culturais advêm da conquista em 1500, como a religião católica implantada pelos jesuítas, por exemplo. Em Campo Grande, as contribuições portuguesas nos campos da música, da dança e da culinária só não foram maiores em relação à paraguaia, libanesa ou japonesa, por exemplo, por que o núcleo de portugueses radicados aqui no começo do século era pouco aberto. “O Centro Beneficente Português era bem referenciado, composto por trabalhadores qualificados, que eram raros em Campo Grande. Eles eram ou empresários ou da construção, e acabavam se elitizando” explica o historiador Hildebrando Campestrini. Após a sede estar pronta, o ambulatório do Centro Beneficente Português foi criado e manteve funcionamento por vários anos. Sua inauguração, às 16 horas do dia 14 de novembro de 1948, é relatada no livro de Ledir Pedrosa, que também explica como o primeiro médico aceitou atender no Centro. “O dr. Carlos Engelsing, médico com muito boa vontade em atendimento voluntário, não cobrando por seus serviços, propôs que apenas colaborassem com a gasolina para o carro com o qual se deslocava de sua residência até o ambulatório. Em retribuição ao médico, a comissão julgou que de alguma maneira deveriam fazer algo. Resolveram então ceder a sala para que ele atendesse também seus clientes particulares”. A imprensa divulgou, quatro anos depois, que o ambulatório continuava o seu funcionamento, mas outro médico fazia o atendimento, o dr. Osvaldo de Figueiredo. As atividades continuaram ainda por muito tempo. Foram realizadas no ambulatório do Centro Beneficente Português mais de vinte e cinco cirurgias de apêndice por um médico descendente de alemão, oficial do Exército. Esse ambulatório só parou de funcionar quando o médico dr. Osvaldo o deixou. O hospital de caridade pretendido pelos primeiros mentores do Centro Beneficente Português não chegou a ser construído.
Segunda Fase: Centro Beneficente Português, da decadência ao apogeu
TURBULÊNCIAS
No início da década de 50 são cadastrados novos sócios, muitos portugueses chegam a Campo Grande em busca de amparo nos parentes e amigos que já tinham se estabelecido na nova terra, e tentando oportunidades longe de uma Europa devastada pelos efeitos da Segunda Guerra Mundial. Nessa época, o Centro Beneficente Português começa uma decrescente, que perdura até a década de 60. Foi um período em que, talvez por falta de uma liderança mais eficiente, o Centro foi locado e começou a ser visto de uma maneira negativa pela sociedade, principalmente em função de alguns frequentadores, que desmoralizavam sua sede. Havia jogos de carteado e os carnavais apenas visavam o lucro. Isso começa a mudar no início dos anos 60, na época da diretoria de José Carlos da Paz. Entretanto, alguns incidentes e mal entendidos em administrações passadas do Centro Beneficente Português deixavam o clima tenso. Além da moral do Centro estar em baixa perante a sociedade, o prédio da sede precisava de reformas, pois seu estado de conservação estava precário e oferecia pouca segurança. Aconteceu então um importante debate entre os diretores sobre a polêmica questão: reformar ou construir uma nova sede? Alguns argumentavam que o Centro deveria ter como sede algo moderno, de acordo com o progresso da cidade, enquanto outros valorizavam o apego à memória afetiva que tinham em relação à primeira. Os desgastes provocados pelas divergências de opinião levaram à renúncia de vários diretores, inclusive do presidente do Centro na época, que também alegou motivos de saúde para justificar sua saída. Em abril de 65, Antônio Pereira Veríssimo assume a presidência do Centro Beneficente Português, com a difícil missão de recuperar a moral, reunir novamente os lusitanos e descendentes e reerguer o Centro Beneficente Português, cuja sede não foi vendida.
PARTICIPAR É PRECISO
É com certa nostalgia que a dona Noêmia Pedrosa, portuguesa que chegou aqui aos 22 anos de idade, em 1952, lembra-se desta fase do Centro Beneficente Português. Em uma época quando tudo era difícil, o empenho e a dedicação de cada um de seus membros fazia absoluta diferença. Foi com as cobranças por comprometimento feitas por Antônio Veríssimo e outros diretores e sócios atuantes, que muitos portugueses passaram a doar-se mais para o Centro Beneficente. “Aquelas pessoas ajudaram a reviver o Centro Português como se fosse um parente que se ajuda quando está na pior. O Veríssimo cobrava a participação das pessoas. Lembro que uma vez ele me falou: ‘sabia que o Centro Português está precisando de uma estante?’ Percebi que ele estava falando da minha estante, e ele respondeu ‘tem que doar, o Centro está precisando, eu dei as janelas, porque você não daria a estante?’” lembra-se. Seu esposo, Antônio Gomes Pedrosa, também participou de diretorias naquela época, chegando a ser presidente anos depois, assim como o filho deles, Antônio Manuel Marques Pedrosa, que se lembra das mudanças que a diretoria de Veríssimo implantou para recuperar a moral do Centro. “O seu Veríssimo queria moralizar, tirar a fama de 5ª categoria. Pra você ter uma ideia, nos bailes daquele tempo ele exigia que os homens fossem de terno para melhorar a estima do Centro Português”. Veríssimo chegou ao Brasil em 08 de outubro de 1950 com sua esposa, Silvina Tomé Veríssimo (que hoje é nome da rua em frente ao Clube Estoril), e com a filha Maria Licínia, que tinha quatro anos na época. Na década de 60, quando seu pai assumia a presidência do Centro Beneficente Português, Licínia estava na adolescência. Hoje, ela continua o trabalho de seu pai atuando no Conselho Fiscal da Associação, e sua memória resgata boas lembranças da liderança exercida por Antônio. “Meu pai ia de casa em casa buscar as pessoas para participarem das festividades. Naquele tempo, podiam transportar pessoas na carroceria das caminhonetes, e ele aproveitava para recolher todo mundo. Ele falava com saudosismo de Portugal e buscou reintegrar os membros da colônia que estavam dispersos. Eu tenho a impressão que a junção que ele começou naquela época é o que resultou no que o clube é hoje: o melhor que existe”.
A NOVA GERAÇÃO DO CENTRO PORTUGUÊS
O costume de ir de porta em porta buscar as pessoas da colônia portuguesa para as atividades do Centro continuaram. O sucessor de Veríssimo no cargo de presidente, José Maria Alves da Rocha, também se valia do próprio “Chevrolet C14” para transportar os jovens portugueses e descendentes para os ensaios do Rancho Folclórico, que havia sido reativado na época, como conta um de seus nove filhos, José Augusto Alves da Rocha: “Eu mesmo tive que tirar carteira de motorista pra ajudá-lo com as coisas do Centro. Todos os domingos ele ia de casa em casa buscar o pessoal para os ensaios da dança”. Nessa época, formou-se um grupo de jovens no Centro Beneficente Português que anos depois seria responsável pela sua reformulação total e pelas recentes gestões. Participavam do Grupo Folclórico na época, por exemplo, Antônio Pedrosa, Maria de Fátima, José Alves da Rocha e o jovem Antônio Manuel Cordeiro Leal. No dia primeiro de março de 65 a juventude portuguesa se organizou para fundar um departamento de jogos, e o seu primeiro presidente foi justamente ele, Antônio Leal, que agora em 2011 tomará posse como novo presidente da Associação Luso Brasileira. “Os ensaios do Rancho Folclórico eram das 14h às 16h. Depois disso, até às 18h, aconteciam brincadeiras dançantes e jogos” relembra. Com o departamento de jogos, o Centro Beneficente Português passou a ter várias atividades para os jovens da colônia e o curioso é saber os itens da lista de jogos requeridos pelo departamento, certamente diferentes dos que poderiam ser pedidos pelos jovens do século XXI: três jogos de damas, um loto, um bolibox, um pega vareta, um quadra de bichos, um corrida de cavalos, um ludo e ludo real, um quebra cabeças solitário, um jogo de ferrovia, entre outros. Com o término dos ensaios do Rancho, este departamento foi desativado em 1968. Foi uma época de muita atividade social no Centro Português, e é uma fase em que o seu próprio paradigma começa a mudar. Como essa geração já era formada por filhos de portugueses e pelos portugueses que haviam fixado raízes em Campo Grande e estavam inseridos na sociedade, a ideia de uma associação que os amparasse na doença e na velhice deu lugar à necessidade de um local reuniões e convivência social, que cresceu ao passar dos anos em relação às funções beneficentes. Vale ressaltar que, mesmo assim, o caráter filantrópico continua até hoje.
MOBILIZAÇÃO QUE ENVOLVIA A FAMÍLIA PORTUGUESA
Na década de sessenta, o Centro Beneficente Português passou por momentos difíceis. Além do mal estado de conservação do prédio, havia dívidas. Para recuperar as finanças, a colônia portuguesa teve de se unir e realizar vários eventos para arrecadar fundos. Silvia Espinosa da Rocha, pantaneira que se casou com o português José Maria, sabe perfeitamente disso: “naquele tempo não se contratava uma equipe pra fazer as festas, todos tinham que participar”. Não apenas as mulheres, como também as crianças e adolescentes, uniam-se pelo sucesso das festividades. As filhas de Silvia com José, Marilza, Ana e Ruth, lembram-se disso: “a gente tinha que ficar lá descascando ovos, ajudando na cozinha. Eu carrego até hoje essa lembrança daquele tempo” diz uma delas, mostrando a cicatriz que tem no dedo. Outra que mantém viva a memória da participação é Maria Licínia: “Sempre que tinha um baile, como os de carnaval, vários grupos faziam fantasias, nós mesmos que decorávamos as mesas” conta. Nessa época, Maria de Fátima Corado ainda era criança. Mais nova que seus amigos do Centro Português, ela foi criada ali dentro e, como era muito apegada ao pai, Joaquim Gabriel, ficava em sua companhia até que as festas acabassem. “Ele geralmente trabalhava no caixa nessas festas. Eu me lembro de dormir embaixo do balcão, ficava grudada nele. Minha mãe ficava em casa cuidando da minha irmã mais nova e eu ficava com meu pai. Dona Iraci me chamava pra ir embora, mas eu não arredava o pé”, lembra-se. A união dos sócios do Centro fazia a colônia portuguesa acontecer em Campo Grande. Por dois anos, a prefeitura de Antônio Mendes Canale realizou desfiles envolvendo os imigrantes no dia do aniversário da cidade, 26 de agosto. Nesses eventos, o Centro Beneficente Português teve destaque, trazendo para a avenida grandes alegorias, como a Torre de Belém, em 1964, e a Caravela, no ano anterior, que, de tão grande, só saiu da oficina onde foi construída depois que derrubaram parte do muro (eles já sabiam que teriam de derrubá-la, mas era o único jeito de fazer uma grande alegoria). Após a ascensão do Centro, no começo da década de 70 uma assembleia geral extraordinária decide alugar a sede do Centro Beneficente Português e fechar temporariamente o clube. O aluguel seria revertido na construção de uma nova sede. Por um tempo, as atividades praticamente cessaram. Muitos dos jovens que integravam essa nova geração, constituída por portugueses que chegaram a Campo Grande ainda crianças ou por filhos de portugueses, já nascidos no Brasil, passariam esses anos cursando faculdades em outras cidades, como o Rio de Janeiro, já que no Mato Grosso do Sul não havia opção.
Terceira Fase: O Centro beneficente se torna Associação
DE CENTRO BENEFICENTE PORTUGUÊS À ASSOCIAÇÃO LUSO BRASILEIRA
Entre meados dos anos 70 e 80, o Centro Beneficente Português teve pouca atividade social. A sede, na Rua Barão do Rio Branco, foi alugada para o banco Real, e pensou-se na construção de uma nova sede em um terreno em frente ao Belmar Fidalgo, que era patrimônio do Centro. Entretanto, esse terreno também foi alugado, para uma lanchonete chamada “Mangueira Lanches”, aonde chegaram a acontecer algumas reuniões de diretoria. As diretorias desse período tiveram funções essencialmente administrativas e burocráticas, utilizavam os aluguéis para pagar as contas, não havia atividade social. No início da década de 80, os filhos da primeira geração de imigrantes portugueses começaram a retornar para Campo Grande, já formados, mais maduros, e com muitas ideias novas. Começa um movimento para reativar o Centro Beneficente Português. Reorganizados, é convocada uma assembleia geral extraordinária no dia 07 de fevereiro de 1985 para aprovação de um novo estatuto e tendo como pauta principal o novo nome para o Centro Beneficente Português. O atual presidente do conselho fiscal João Daniel, era um dos secretários daquela diretoria, e foi quem deu a ideia da nova nomenclatura. “O Centro não cumpria mais apenas a função assistencial, que no começo era sua razão de ser, por isso o nome ‘beneficente’ não serviria. Outra coisa importante está no fato de o número de portugueses ter diminuído em relação ao de brasileiros, que eram descendentes, mas tinham nascido no Brasil, o que fez o centro não ser apenas Português”. Sua sugestão foi inspirada em um nome que ele já tinha visto no Rio de Janeiro e havia ficado em sua cabeça. O Centro Beneficente Português passava a se chamar Associação Luso Brasileira de Campo Grande, Mato Grosso do Sul.
A NOVA CASA
Pelas novas pretensões daquela geração, a sede da Associação Luso Brasileira deveria ser um amplo espaço para lazer e recreação, o que não poderia ser feito no antigo prédio, alugado para o Banco Real, nem no espaço em frente ao Belmar. Decidiram então que seria necessário comprar e construir uma nova sede em outro terreno. Para isso, elaboraram uma estratégia. Faziam parte do patrimônio do antigo Centro Português os terrenos em frente ao Belmar Fidalgo, o prédio da Rua Barão do Rio Branco e uma área rural, que tinha sido comprada para se fazer um clube de campo que não vingou (dessa área foram retirados alguns coqueiros que hoje estão no Clube Estoril). Para conseguir os fundos necessários para a compra de um novo terreno e para a construção da nova sede, os patrimônios do antigo Centro Beneficente Português foram vendidos, e, como os recursos financeiros ainda eram insuficientes para a execução completa de uma obra daquelas, foram disponibilizados para venda os títulos de sócios patrimoniais (proprietários) através da empresa Financial Imobiliária. Para que essa venda de títulos tivesse sucesso, foi elaborada uma grande campanha publicitária que dispunha de maquetes e explicações sobre as futuras dependências, e foi então que se adotou como nome de fantasia para o espaço “Clube Estoril”. O lugar se tornou o departamento de lazer da Associação Luso Brasileira. O nome teve tanta aceitação que até hoje fica mais em evidência do que o próprio nome da Associação. Com o dinheiro arrecadado nos negócios, o Clube Estoril foi construído em um terreno com área de aproximadamente 51 mil metros quadrados, comprado de Giocondo Orsi. O primeiro presidente da Associação, quando já estava no novo espaço, é o atual Consul Honorário de Portugal em Campo Grande, Fernando Santos Gonçalves. Ele se lembra da construção do clube, que hoje abriga o escritório do consulado. “Em 88 começou a construção e em 29 de junho de 91 inauguramos o clube Estoril” recorda. São 5 mil metros quadrados de área construída. De acordo com Gonçalves, Campo Grande tem uma colônia de portugueses que chega a duas mil pessoas, considerando-se os natos e os descendentes, pois só de sócios remidos são uns 500. A inauguração da nova sede, exatos 20 anos atrás, dá início a uma nova fase para a Associação Luso Brasileira. Apesar de duas décadas parecerem pouco para se construir uma biografia, o Clube Estoril consolidou sua marca na cidade. Sua trajetória se adequa às mudanças históricas recentes, quem acompanha de perto sabe disso. “No começo, os clubes eram como um imã para associados, porque eram raros esses espaços nas cidades. Mas aí, no país inteiro, empreendimentos privados começaram a surgir, como os prédios residenciais e condomínios fechados, que, com suas amplas áreas de lazer, acabaram se tornando nossos concorrentes. Dessa forma, os clubes tiveram que se readequar, e passaram a ser prestadores de serviço, se encaixando às novas condições do mercado” afirma Antônio Manuel Marques Pedrosa, que presidiu a Associação Luso Brasileira em duas oportunidades: de 1997 a 1998 e de 2005 até 2007. O maior exemplo dessa adequação está na criação, que ele propôs em 98, do título de sócio recreativo. Deu tão certo aquela experiência, que até hoje essa ideia continua. E as adequações também. Ano passado, a atual diretoria inovou com a criação do título de sócio individual, atendendo a uma demanda antes desconsiderada. Durante esses vinte anos, o Clube Estoril recebeu eventos importantes, como o lançamento do PAC pelo ex-presidente Lula, foi palco de shows como o de Bruno e Marrone, e sempre recebe a visita de convidados da "terrinha", como o cantor Roberto Leal e a comissão da Federação de Vôlei de Portugal. Quanto à colônia portuguesa, o espírito de união continua. A tradição e os mesmos ideais dos criadores do Centro Beneficente Português ainda norteiam as ações da Associação Luso Brasileira, apenas com as mudanças que o tempo impõe. Eventos beneficentes, por exemplo, ainda são realizados, e a Associação, enquanto entidade, continua a cumprir o seu dever no papel de prestar assistência à sociedade. Eventos de integração das colônias de imigrantes, como aqueles da década de 60, foram retomados pela prefeitura de Campo Grande nos anos noventa, com o nome de Festa das Nações. Nessas oportunidades, os membros da Associação Luso Brasileira se envolveram e se dedicaram para fazer a diferença, tanto na dança quanto na gastronomia, onde se produzia uma grande quantidade de bolinhos de bacalhau, como diz dona Noêmia “eram de 30 a 35 quilos só de massa pra fazer a quantidade de bolinhos de bacalhau pras feiras”. Contam que o prefeito da época e até o artista circense Beto Carreiro elogiavam muito a culinária da Associação nessas ocasiões. Na ausência de incentivos públicos por meio de festas que ressaltem a importância das colônias em Campo Grande, o Clube Estoril realiza eventos que reafirmam a cultura portuguesa, como as Sardinhadas, Arroz de Braga, Bacalhoadas e Carneiradas. O Grupo Folclórico ressurgiu nos anos 2000 e até hoje se dedica a fortalecer a transmissão da cultura musical e de dança pelas gerações. A Associação Luso Brasileira é o resultado dos esforços dessas pessoas que assumiram como verdade o enunciado de Fernando Pessoa “Navegar é preciso”. Como resume dona Noêmia, “o Estoril é o filho rico de um pai pobre”, o que demonstra a necessidade de valorização de toda essa história de garra e obstinação desses que, como representam as cores da bandeira portuguesa, nutriam grandes esperanças, e coragem para enfrentar batalhas. Aqueles que viveram os altos e baixos do Centro Beneficente Português carregam consigo a responsabilidade de perpetuar a memória dos seus fundadores, seus pais, avós e amigos. Quando passa em frente à antiga sede do Centro Beneficente Português, Ana Lúcia Alves da Rocha sente saudades, assim como Maria de Fátima quando passa por ali a pé. Mas o sentimento desses que hoje fazem a Associação Luso Brasileira também pode ser encontrado na fala de Maria Licínia, descendente dos primeiros Thomés que chegaram a Campo Grande, quando perguntada se sente saudade daqueles tempos: “Não. Eu gosto muito daqui, me sinto em casa, pra mim é tudo”. Antes, um centro para amparar portugueses longe de casa, hoje, uma casa para muitos descendentes, a história da colônia portuguesa em Campo Grande ainda terá o que contar. Se a inspiração vier do hino português, as conquistas de amanhã serão certas se tiverem como base o que a história dos antepassados tem para dizer:
A Portuguesa
Heróis do mar, nobre povo,
Nação valente, imortal,
Levantai hoje de novo
O esplendor de Portugal!
Entre as brumas da memória,
Ó Pátria, sente-se a voz
Dos teus egrégios avós,
Que há-de guiar-te à vitória!
Bibliografia:
Livros:
PEDROSA, Ledir Marques. Centro Beneficente Português – Uma vida, uma história. Campo Grande: 2000.
GOMEZ, Emilcy Thomé. Portugueses – páginas 310 a 317. Campo Grande – 100 anos de Construção.
Revista:
Revista Arca nº7, páginas 10 a 19 – Imigração Portuguesa.
Site:
Site da Associação Luso Brasileira de Campo Grande, MS. A história da Associação. http://clubeestoril.com.br/hist%F3ria-da-associa%E7%E3o
Documentos:
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de Mato Grosso do Sul – IBGE/MS
Pesquisa jornalística sobre a NOB, Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo - UFMS, 2008
MATÉRIA 02
Revista Estoril – Número 01 - Junho 2011
Texto: André Patroni